UTILIZAÇÃO PRÁTICA DO ELETROCARDIOGRAMA PARA AVALIAÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO DE RISCO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

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UTILIZAÇÃO PRÁTICA DO ELETROCARDIOGRAMA PARA AVALIAÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO DE RISCO DA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA

Por Paulo Ricardo Nauar, Médico Cardiologista Hospital Universitário João de Barros Barreto – UFPA

Insuficiência cardíaca (IC) é uma síndrome clínica, na qual o coração é incapaz de bombear sangue de forma a atender às necessidades metabólicas tissulares, ou pode fazê-lo somente com elevadas pressões de enchimento. Tal síndrome pode ser causada por alterações estruturais ou funcionais cardíacas e caracteriza-se por sinais e sintomas típicos, que resultam da redução no débito cardíaco e/ou das elevadas pressões de enchimento no repouso ou no esforço (diretrizes SBC-Arq Bras Cardiol. 2018; 111(3):436-539).

A correta abordagem diagnóstica e estratificação, auxiliam no planejamento terapêutico e na estratégia imediata e de longo prazo. A identificação de fatores de mau prognóstico, tornam-se importantes e necessários, para que a correção de causas modificáveis seja feita de forma eficaz. O eletrocardiograma (ECG), aplicado de maneira precoce, é uma ferramenta valiosa a ser utilizada para esses pacientes.

Há muito, o ECG deixou de ser um exame, que deve ser avaliado e entendido somente pelo cardiologista. É de fundamental importância que médicos de todas as especialidades, assim como outros profissionais da área de saúde, como enfermeiros e fisioterapeutas, estejam familiarizados com a correta interpretação e aplicação do método na prática clínica, em especial em situações de urgência e emergência.

Eletrocardiograma inicial

A IC é uma síndrome complexa, em que o diagnóstico é iminentemente clínico, sendo que não existe um sintoma e/ou exame específico, devendo o profissional, valer-se de sinais e mesmo métodos diagnósticos que possam auxiliar nesta abordagem inicial.

A realização de eletrocardiograma de 12 derivações é recomendada na avaliação precoce de todos os pacientes com IC, para avaliar sinais de cardiopatia estrutural (diretrizes SBC-Arq Bras Cardiol. 2018; 111(3):436-539).

O ECG normal não exclui o diagnóstico de IC, porém a presença de alterações eletrocardiográficas, podem complementar a suspeita clínica, além de fornecer subsídios para o tratamento correto, além de servirem como marcadores de risco e prognóstico.

  1. Alterações na frequência cardíaca e no ritmo: A taquicardia (FC > 100 bpm) por si só além de auxiliar na suspeita clínica, é um marcador de mau prognóstico e pode ser utilizada para indicar novas terapêuticas, como por exemplo o uso de Ivabradina em pacientes utilizando doses máximas de beta-bloqueador e que mantém-se sintomáticos (classe funcional II NYHA) com FC > 70 bpm, desde que os mesmos estejam em ritmo sinusal e tenham uma FEVE < 35%. Distúrdios do ritmo como flutter ou fibrilação atriais, além de comprometerem o débito cardíaco (DC) por prejuízo na contração atrial, aumentam o risco de eventos tromboembólicos e necessitam anticoagulação adequada.

fig1

Fig. 1: ECG de paciente portador de miocardiopatia isquêmica, complicada por fibrilação atrial (FA). Notar ondas q em parede inferior e RR irregular com ondas f. A presença de FA diminui em torno de 30% o DC, pela perda da contração atrial, o que pode ser um sério risco de descompensação em paciente com IC, além do risco aumentado de eventos tromboembólicos. O eletrocardiograma neste caso além de ajudar a esclarecer a etiologia, fornece informações prognósticas importantes, que auxiliam na estratégia de tratamento.

Extrassístoles ventriculares, podem indicar risco elevado de morte súbita, dependendo de sua incidência, origem / localização e complexidade. A avaliação do componente arrítmico se faz necessário, especialmente em pacientes com disfunção ventricular severa (FEVE < 35%). Atualmente existem estudos confirmando a possibilidade de taquicardiomiopatia, não só com arritmias supraventriculares, mas também com arritmias ventriculares, sobretudo com carga arrítmica > 15% no holter de 24h.

Outras alterações do ritmo, tanto taqui (taquicardia ventricular) quanto bradiarritmias (bloqueios átrio-ventriculares) devem ser prontamente identificadas e solucionadas. Pacientes com IC aguda, descompensados, devem ter os distúrbios do ritmo tratados através de cardioversão ou uso de marcapassos, para a correta estabilização hemodinâmica.

O ECG também permite avaliação do funcionamento do marcapasso (MP), em pacientes portadores do dispositivo. O mau funcionamento (alterações de comando ou sensibilidade ou mesmo arritmias induzidas ou mediadas pelo MP), podem ser responsáveis pela agudização de IC crônica.

fig2

Fig. 2: Taquicardia ventricular sustentada (TVS) em paciente com IC crônica agudizada e disfunção ventricular esquerda severa (FEVE 21%). Utilizar critérios eletrocardiográficos de Brugada para o diagnóstico.

  1. Sobrecargas de câmaras: Sobrecarga de átrio esquerdo (SAE) identificada no ECG pela presença de onda P bimodal e índice de Morris positivo, por si só já é indicativa de alterações na função diastólica, além de funcionar como fator de risco para o desenvolvimento de arritmias supraventriculares, em especial fibrilação atrial. Identificação de sobrecarga de ventrículo esquerdo (SVE-HVE) facilita o diagnóstico de IC, especialmente em casos em que o RX é duvidoso ou mesmo naqueles em que o exame físico não fornece tantos indícios. A utilização de critérios de voltagem, mesmo apenas a presença de R de aVL > 11mm são, muitas das vezes, suficientes para o diagnóstico (figuras 3 e 4). Critérios de sobrecarga de átrio direito (SAD) e ventrículo direito (SVD) sem sinais de comprometimento de câmaras esquerdas, nos fazem pensar em patologias envolvendo o território pulmonar e evoluindo com cor pulmonalle ou mesmo hipertensão arterial pulmonar (HAP).

 

  1. Avaliar a possibilidade de SCA, em especial IAMCSST: todo eletrocardiograma quando realizado inicialmente, tem que ser avaliado buscando-se a possibilidade de SCA, em especial o supradesnivelamento do segmento ST, indicativo, na vigência de quadro clínico sugestivo (dor precordial típica ou IC aguda), de infarto do miocárdio. Outros sinais eletrocardiográficos de doença isquêmica são a presença de onda q patológica, infradesnível de segmento ST e onda T invertida simétrica em derivações adjacentes.

fig3

Fig. 3: Paciente com IC crônica agudizada, estagio C, perfil B, em consulta ambulatorial e sem disponibilidade para realização inicial de ecocardiograma. ECG mostra SAE (Morris +) importante, com padrões de sobrecarga de VE (critérios de voltagem), além de outros sinais eletrocardiográficos que nos levam a pensar em comprometimento de câmaras direitas (como a deflexão rápida de P em V1 e as ARV de V1 a V3), podendo, portanto, caracterizarmos como sobrecarga cardíaca generalizada, com predomínio de câmaras esquerdas. O RX mostra aumento da área cardíaca, com ídice cardio-torácico (ICT) > 50% e sinais de congestão.

  1. Distúrbios de condução: a presença de bloqueios na condução intraventricular em pacientes com IC, é indicativa de quadros mais severos, por envolverem de forma mais grave o sistema de condução, estando associados a graus mais importantes de disfunção ventricular, com risco mais elevado de evolução para bloqueios átrio-ventriculares avançados (BRD + BDASE / BAV 1º grau), assim como associação com dissincronia cardíaca (BRE com QRS > 150mseg), sendo fatores de pior prognóstico e indicativos para utilização de estimulação cardíaca artificial ou mesmo terapia de ressincronização cardíaca (TRC), através de marcapasso multicameral.

fig4

Fig. 4: Mesmo paciente da figura 3, 30 dias depois de iniciar o tratamento medicamentoso, com retornos semanais no ambulatório de cardiologia do HUJBB. Já com melhora importante da classe funcional da NYHA e perfil hemodinâmico A. Note-se as expressivas mudanças eletrocardiográficas, que acompanham o quadro clínico do paciente, indicando o remodelamento reverso, que se fez perceber também no RX de tórax com diminuição do ICT. Neste caso o eletrocardiograma além de facilitar o diagnóstico de IC, mostrou ser uma ferramenta importante para o acompanhamento clínico e avaliação da estratégia terapêutica adotada.

Uma forma diferenciada de BRE, chama-se oculto ou mascarado e está relacionado especificamente com casos mais graves com elevada passibilidade de evolução para BAVT (Fig 7).

fig5

Fig 5: Infarto agudo do miocárdio (observa-se corrente de lesão, caracterizada pelo supradesnivelamento do segmento ST), com bloqueio de ramo direito (BRD) e arritmia ventricular complexa (TVNS).

Existem outras formas de se avaliar a presença de dissincronia cardíaca (ecocardiograma ou mesmo ressonância magnética do coração). Porém, os protocolos e diretrizes ainda consideram a forma mais prática e que apresenta excelentes resultados, a utilização do ECG. Pacientes com disfunção ventricular esquerda severa (FEVE < 35%), sintomáticos, apesar de tratamento farmacológico otimizado, beneficiam-se de TRC (estudo COMPANION) em especial quando associado cardiodesfibrilador implantável (CDI), como observado no estudo MADIT.

É importante salientar que a simples presença de BRE no eletrocardiograma, não é indicativa de implante de marcapasso. Devendo ser interpretado dentro de um contexto clínico e levando-se em consideração uma série de critérios para que se obtenha a melhor aplicabilidade de um tratamento diferenciado e de alto custo.

fig6

Fig 6: Paciente com IC perfil A, estagio C por miocardiopatia isquêmica, pós infarto do miocárdio de parede antero-septal, complicado por BRD. Neste caso percebe-se o grande comprometimento septal, envolvendo o sistema de condução, que ocasionou o distúrbio do ramo direito, com característica eletrocardiográfica peculiar, onde se identifica onda q profunda em V1, com padrão qR e não o clássico rSR` do BRD convencional. Esses pacientes têm maiores chances de evoluir para BAVT, sendo prudente a indicação de estudo eletrofisiológico.

fig7

Fig 7: Paciente portadora de IC estagio C, perfil hemodinâmico A, por miocardiopatia isquêmica e FEVE de 32%. Observa-se neste ECG presença de bloqueio de ramo mascarado (BRE oculto), com BDASE com hiperdesvio para esquerda com BRD, porém ausência de onda S em V1. Além disso BAV de 1° grau com ondas q patológicas em parede antero-septal. A paciente foi submetida a implante de marcapasso.

fig8

Fig 8: Paciente com IC estagio C, perfil A, em classe funcional II da NYHA apesar do uso em dose máxima de carvedilol, sacubitril/valsartana, espironolactona. Observa-se BRE com QRS largo e fibrose de parede anterior. Miocardiopatia isquêmica, candidato a TRC / CDI (FEVE 21%).

fig9

Fig 9: Paciente idosa de 79 anos, portadora de miocardiopatia isquêmica, IC cardíaca, estagio C, em classe funcional I da NYHA, perfil hemodinâmico A, em uso de tratamento medicamentoso otimizado. Observa-se ritmo sinusal, com critérios de HVE e presença de fibrose em parede antero-septal, evoluindo com distúrbio de condução pelo ramo esquerdo, mas com QRS < 130 mseg, não sendo indicativo de TRC. FEVE 44% que não indica necessidade de CDI. Neste caso o ECG ajuda no diagnóstico etiológico da IC.

fig10

Fig 10: Paciente de 68 anos, sexo feminino, em IC classe funcional II da NYHA, estagio C, perfil A, evoluindo com DVE severa, FEVE 28% e miocardiopatia dilatada após infarto anterior extenso. ECG mostra padrão de SVE pelos critérios de voltagem, fibrose em parede anterior, com isquemia antero-lateral. A extensão da fibrose pelo ECG é um critério de gravidade, quanto maior o número de derivações comprometidas, pior o prognóstico. Paciente em avaliação para implante de CDI.

Além dos critérios já mencionados, outras alterações eletrocardiográficas estão associadas a morte súbita cardíaca, em especial o QT longo e alternância de onda T.

O risco de morte súbita cardíaca é maior quando a tríade: componente iquêmico (fibrose / isquemia miocárdica), componente arrítmico (arritmias ventriculares complexas) e disfunção ventricular esquerda severa (FEVE <35%) estão presentes em um mesmo paciente. Tais casos devem ser considerados com cuidado para implante de CDI.

Conclusão

A interpretação correta do ECG fornece dados importantes nos pacientes com insuficiência cardíaca e comprovadamente melhora o planejamento estratégico, facilita a tomada de decisão e deve ser amplamente difundida e aplicada, especialmente em locais onde o acesso a outros exames complementares se faça mais difícil.

Obs: Todos os eletrocardiogramas utilizados no artigo, são de arquivo pessoal.

Maiores detalhes sobre BRE oculto em www.cardiologistabelém.com.br