BLOQUEIO OCULTO DE RAMO ESQUERDO EM PACIENTES PORTADORES DE CARDIOPATIA CHAGÁSICA

DOENÇA RENOVASCULAR, HIPERTENSÃO, APRESENTAÇÃO DE CASO
15 de julho de 2015
DESCRIÇÃO DE CASO CLÍNICO
15 de julho de 2015

 

Paulo Ricardo Nauar Lisboa de Oliveira*

Rodrigo Leandro Grinberg*

 Rodrigo Okino Nonaka*

Helio J. Schwartz***

Abílio Augusto Fragata Filho****

Introdução: O bloqueio de ramo esquerdo oculto, também denominado disfarçado ou mascarado, é um tipo especial de bloqueio bifascicular, descrito inicialmente por Richman em 1954. Estudos têm relacionado sua presença principalmente com cardiopatia isquêmica e hipertensiva, porém até o presente momento, carecem trabalhos associando este tipo de bloqueio a cardiopatia chagásica. Objetivo: Análise da presença de padrões eletrocardiográficos que poderiam sugerir este bloqueio de ramo esquerdo (BRE) inusual, em pacientes portadores de cardiopatia chagásica. Material e Métodos: Trata-se de um estudo descritivo, onde se selecionou 49 pacientes, sendo 31 do sexo feminino, que apresentavam bloqueio de ramo direito (onda R ou rSR’ em V1) e desvio do eixo elétrico (SÂQRS) para esquerda (BDASE). Considerou-se a presença de BRE oculto quando além das morfologias mencionadas, encontrou-se complexos QRS do tipo R ou Rs (com onda s ≤ 1mm) em D1 e aVL no eletrocardiograma de superfície. Resultados: A prevalência de bloqueio oculto nesta população foi de 18,3% (9 pacientes), sendo 7 (77,7%) do sexo feminino. A idade média foi de 52,1 anos. Todos apresentavam cardiopatia chagásica forma dilatada, com disfunção ventricular e fração de ejeção (FE) < 40% ao ecocardiograma, sendo que 67% encontravam-se em classe funcional III e IV da New York Heart Assosiation.Três destes pacientes (33,3%) evoluíram com necessidade de implante de marca-passo definitivo. Conclusão: De acordo com a prevalência encontrada, podemos sugerir que o bloqueio oculto do ramo esquerdo (Hiss) pode ser considerado uma possível nova realidade na prática clínica diária de pacientes com cardiopatia chagásica.

Introdução

            O bloqueio de ramo esquerdo oculto, também denominado disfarçado ou mascarado, é um tipo especial de bloqueio bifascicular, descrito inicialmente por Richman em 1954 (1) e posteriormente confirmado por Lepschkin (2) e Rosenbaum (3), em que encontra-se morfologia de bloqueio de ramo esquerdo (BRE) no plano frontal do eletrocardiograma e bloqueio de ramo direito (BRD) no plano horizontal, com eixo de QRS (SÂQRS) desviado para esquerda.

* Residentes de cardiologia do Instituto Dante Pazzanese.

*** Chefe da seção de eletrocardiografia e vetocardiografia do Instituto Dante Pazzanese.

**** Chefe da seção de miocardiopatias do Instituto Dante Pazzanese.

 

Estudos têm relacionado sua presença principalmente com cardiopatia isquêmica e hipertensiva, porém até o presente momento, muito poucos trabalhos existem correlacionando este tipo de bloqueio à cardiopatia chagásica. É associado com pior prognóstico, havendo progressão para bloqueios de alto grau e insuficiência cardíaca avançada, daí a importância da identificação desta forma inusual de bloqueio de ramo.

Material e Métodos

Trata-se de estudo retrospectivo – descritivo, onde se analisou 50 prontuários de pacientes da seção de miocárdio do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia selecionados de forma aleatória, com diagnóstico de doença de chagas forma cardíaca, que apresentavam BRD (R ou rsR` em V1) e bloqueio divisional ântero – superior esquerdo (BDASE).

No levantamento de prontuário buscava-se análise do eletrocardiograma, considerou-se BRE oculto quando além da morfologia mencionada encontrou-se complexos QRS do tipo R ou Rs (com s ≤ 1mm) em D1 e AVL (vide figura 1), ecocardiograma com ênfase na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE), além de dados clínicos (insuficiência cardíaca e classe funcional da NYHA, evolução para necessidade de implante de marca-passo definitivo por bloqueio AV avançado ou outro tipo de arritmia) e epidemiológicos (sexo e idade).

Um paciente foi excluído por dados incompletos no prontuário médico.

 

fig1

Figura 1: Eletrocardiograma de 12 derivações. Paciente SCB, 64 anos, portador de miocardiopatia chagásica, classe funcional III da NYHA. Ritmo de fibrilação atrial e Bloqueio de ramo oculto. Presença de rsR´ em V1, SÂQRS hiperdesviado para esquerda, além de -45º (BDASE), com morfologia de BRE em derivações periféricas (R em D1 e AVL).

Resultados

De um total de 49 casos, a prevalência de bloqueio oculto  foi de 18,3% (9 pacientes). A idade variou de 21 a 69 anos, com média de 52,1 anos, sendo a prevalência maior no sexo feminino (77,7%), que no masculino.

Todos apresentavam doença de chagas forma dilatada, com FEVE menor que 40% (média 31%) pelo ecocardiograma, e, 67% encontravam-se em classe funcional III e IV da NYHA. Três destes pacientes (33%) evoluíram com necessidade de implante de marca-passo definitivo.
Um paciente com miocardiopatia chagásica (FEVE 30% pelo ecocardiograma), inicialmente com BRE oculto e BAV 1º grau que degenerou em BAV 2º grau 2:1 e piora da classe funcional, tendo sido optado por implante de marca-passo definitivo bicameral (ver figura 2). Os outros dois casos de implante de marca-passo deveram-se a doença do nó sinusal, um por síndrome bradi-taquicardia e outro por fibrilação atrial com baixa resposta ventricular.

tabela1

Tabela I: Resultados. NYHA (New York Heart Association), FA (Fibrilação atrial), BAV (Bloqueio atrio-ventricular).

fig2

Figura 2 A: DRFL, feminino, 46 anos, miocardiopatia chagásica em classe funcional III da NYHA. ECG de 12 derivações mostrando BAV de 1º grau, associado a BRE oculto.

fig3

 

Figura 2 B: A mesma paciente após evolução para bloqueio átrio ventricular avançado, necessitou de implante de marca-passo definitivo, optando-se por marcapasso bicameral. Evoluiu com melhora clínica, passando a classe I da NYHA.

grafico1

 

Figura 3: Prevalência de BRE oculto na população estudada.

grafico2

Figura 4: Gráfico mostrando a distribuição dos pacientes com BRE oculto, de acordo com o sexo.

grafico3

Figura 5: Gráfico mostrando a distribuição dos pacientes com BRE oculto de acordo com a classe funcional da NYHA.

grafico4

 

Figura 6: Necessidade de implante de marca-passo em pacientes com BRE oculto.

 

Discussão

            O bloqueio de ramo oculto é uma forma rara de bloqueio bifascicular, sobre a qual existem poucas referências e que ocorre principalmente em pacientes com cardiopatia avançada (4).

Wilson (5) e posteriormente Roseman (6) em 1950, classificavam este tipo de bloqueio, baseados na morfologia das derivações precordiais, como uma forma particular de BRD. Já em 1954, Richman et al, publicaram uma série de quatro casos e concluíram, através dos achados eletro e vetocardiográficos, tratar-se de BRE complicado por infarto septal ou ínfero-septal, denominando-o de bloqueio de ramo mascarado (1). Posteriormente estes achados foram confirmados por outros autores (2-3), incorporando-se então o diagnóstico de bloqueio de ramo mascarado (oculto), na prática eletrocardiográfica.

A causa deste tipo de bloqueio permanece desconhecida, podendo ser explicada pela presença de BRD associado a BDASE de alto grau, usualmente acompanhado de hipertrofia ventricular esquerda (7), ou seja agressão simultânea aos dois sistemas fasciculares (ramo direito e fascículo ântero-superior esquerdo), sendo que quanto maior o grau do bloqueio divisional, maior o desvio para esquerda e menor será a onda s terminal de D1 (8).

Do ponto de vista clínico, as principais patologias que têm sido relacionadas a este aspecto eletrocardiográfico, são a miocardiopatia isquêmica e hipertensiva (4,7), porém todas as doenças capazes de produzir BRD + BDASE podem, com a progressão do quadro, ocasionar bloqueio oculto, incluindo assim a miocardiopatia chagásica (3,9).

Sua presença tem sido relacionada com pior prognóstico, com evolução clínica desfavorável, ocorrendo em pacientes com graus avançados de cardiopatia, com maior chance de bloqueio átrio-ventricular avançado (4).

Em 1988 Bayés de Luna et al, estudaram a evolução deste tipo de bloqueio bifascicular numa revisão de 100.000 eletrocardiogramas, encontrando 16 casos (13 homens e três mulheres), sendo que a miocardiopatia isquêmica estava presente em 68% e apenas dois não apresentavam evidências de patologias cardíacas ou outros distúrbios de condução (7).  Todos os pacientes encontravam-se em classe funcional III e IV da New York Heart Association, e a evolução para BAVT ocorreu em 56%.  O marca-passo definitivo (MPD) foi implantado em 10 casos, um por síncope e nove por BAVT, sendo que o intervalo entre o diagnóstico e o implante do marca-passo foi de 11,3 ± 22 meses.  Quarenta e três por cento dos pacientes evoluíram para morte por falência ventricular, não ocorrendo nenhum caso de morte súbita.  Não houve diferença de mortalidade entre aqueles que receberam e os que não receberam MPD.

Em 1997, Barrado et al publicaram o seguimento de 22 pacientes com diagnóstico de BRE oculto por período de três anos.  Este trabalho mostra que a incidência deste tipo de bloqueio é maior do que a descrita por Bayés.  Novamente as principais patologias relacionadas com o distúrbio de condução foram a miocardiopatia isquêmica (59%) e hipertensiva (54,5%).  Também nesta série os pacientes encontravam-se em fase mais avançada de cardiopatia e a progressão para BAV avançado foi muito mais freqüente (59%) que no bloqueio bifascicular clássico.  Mediante estes achados os autores propõem que pacientes com o diagnóstico com BRE oculto e síncope ou pré-síncope devem ser encaminhados para estudo eletrofisiológico (EEF) para avaliação de implante de MPD.  Outro achado deste estudo foi associação do bloqueio oculto com arritmias supraventriculares (59%), sobretudo fibrilação atrial (4).

A miocardiopatia chagásica caracteriza-se por polimorfismo de comprometimento do sistema de condução, destacando-se BRD + BDASE, que ocorre em aproximadamente 50% dos casos.  O estudo da atividade elétrica do coração, associado aos dados clínicos, pode orientar quanto ao prognóstico da doença (9).

Como salientado anteriormente muito poucos trabalhos foram feitos a respeito da prevalência de BRE oculto em pacientes chagásicos.  Em 1982 Martinelli Filho et al, publicaram uma série de 20 pacientes portadores de miocardipatia chagásica crônica, dividindo-os em dois grupos.  O grupo 1 era formado por pacientes com padrões clássicos de BRD + BDASE e o grupo 2 com apresentação peculiar de BRE em D1 / aVL e/ou V5 e V6.  Observou-se que os pacientes do grupo 2 apresentavam-se em pior classe funcional, com pior evolução e maior necessidade de implante de marca-passo definitivo, confirmando os achados dos outros estudos mencionados.  A explicação dos autores para esse tipo de alteração eletrocardiográfica era a presença de alto grau de bloqueio da divisão ântero-superior do ramo esquerdo, áreas de fibrose importante na parede anterior, lateral e inferior e grande sobrecarga ventricular esquerda, possivelmente a associação destes três fatores (9).

Em nosso trabalho, apesar da casuística pequena e de tratar-se de um estudo retrospectivo, encontramos concordância com os dados da literatura.  A prevalência de bloqueio de ramo oculto foi de 18,3%, mostrando não ser infreqüente sua presença nos pacientes chagásicos, mas que muitas vezes pode não estar sendo diagnosticado. O BRE oculto por si só, classifica o paciente como sendo de alto risco, pois como pôde-se perceber nos resultados, geralmente são doentes em fase avançada da doença, com pior classe funcional, baixa fração de ejeção e freqüentemente com necessidade de implante de MPD.

De acordo com a prevalência encontrada, podemos sugerir que o bloqueio oculto do ramo esquerdo (Hiss) pode ser considerado uma possível nova realidade na prática clínica diária de pacientes com cardiopatia chagásica.

Referências

  1. Richman JL, Wolff L. Left bundle branch block masquerading as right bundle branch block. Am Heart J 1954; 47: 383-391.
  2. Lespechin E. The eletrocardiographic diagnosis of bilateral block in relation to heart heart block. Progress Card Dis 1964; 6: 445-471.
  3. Rosembaum MB, Elizari MV, Lazzari JO. Los hemibloqueos. Buenos Aires: Ed. Paidós,1868;315-327.
  4. Barrado JJG, Albarrán ST, Rubira JCG, et al. Características clínicas y electrocardiográficas del bloqueo bifascicular disfrazado. Rev. Esp Cardiol. Vol.50 (2), 1997;36-41.
  5. Wilson FN. Concerning the form of QRS deflections of the electrocardiogram in bundle branch block. J Sinai Hosp 8:1110,1942.
  6. Roseman RH, Picks A, Katz LN. Intraventricular block: review of the literature. Arch Int Med. 86:196, 1950.
  7. Bayés de Luna A, Torner P, Oter R, et al. Study of the evolution of masked bifascicular block. PACE, 1998; 11:1517-1521.
  8. Carneiro EF. O ELETROCARDIOGRAMA – 10 anos depois. Ed. Enéas Ferreira Carneiro, 1997;198-221.
  9. Martinelli Filho M, Dauar D, Barreto ACP, et al. Variante do padrão clássico de bloqueio de ramo direito associado a bloqueio da divisão antero-superior do ramo esquerdo. Prognóstico na doença de chagas. Arq. Bras. Cardiol. 38(5):375, 1982.

 

SUMMARY:

Inroduction: The masquerade left bundle branch block is a special type of bifascicular block first described by Richman in 1954.  It has been mainly related to isquemic and hypertensive cardiopathy, however there is a lack of studies relating this kind of bundle block with chagas heart disease.  Objective: Electrocardiographic pattern evaluation of unusual left bundle branch block (LBBB) in patients with chagas heart disease.  Material and Methods: this is a descriptive study with 49 patients selected, 31 women, presenting right bundle branch block (R or rSR´ deflections in Lead V1) and left-axis deviation (SÂQRS).  It was considered masquerade left bundle branch block when there was R ou Rs deflection (s wave ≤ 1mm) in leads D1 and aVL beyond those changes described above.  Results: the prevalence of the masquerade left bundle branch block in this population was 18,3% (9 patients), which 7 (77,7%) were women.  The mean age of this population was 52,1 years old.  All of them presented dilated chronic chagas heart disease, with left ventricle disfunction and ejection fraction (EF) < 40% through the ecocardiogram, which 67% were New York Heart Association functional class III and IV.  Three of these patients (33,3%) had to use a definitive pacemaker.  Conclusion: According to the prevalence described, the masquerade left bundle branch block can probably become a new routine reality in clinical patients with chagas heart disease.

 

Key words: Masquerad left bundle branch block, Chagas heart disease.

Endereço para correspondência:

Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia – Seção de Eletroacardiografia – Vetocardiografia.

Av. Dante Pazzanese, 500. Ibirapuera São Paulo – SP.

nauarpr@hotmail.com